A Criatividade da Esquerda
A Criatividade da Esquerda
Dizem que a direita é mais eficiente do que a esquerda. Pode ser. Mas a esquerda é muito mais criativa.
De 14 a 17 de Maio de 2001 participei em Brasília da Oficina para a Inclusão Digital realizada pela Secretaria da Presidência da República, realizada pelo e-gov -- Comitê Interministerial para o Governo Eletrônico, órgão vinculado diretamente à Presidência da República (vide http://www.governoeletronico.gov.br/).
Vou aqui tecer alguns comentários de natureza pessoal sobre o evento, com o intuito de mostrar algumas das estratégias a que a esquerda vem recorrendo para manter o seu objetivo de tomar de assalto o governo e controlar as nossas vidas, roubando-nos a liberdade de que ainda dispomos.
1. Embora tenha participado de três Grupos de Trabalho e de todas as plenárias, procurei restringir minhas manifestações, nessas ocasiões, a questões em que o meu ponto de vista pessoal, no meu entender, não conflitava com, nem ia além, de posições oficiais ou conhecidas do Instituto Ayrton Senna (instituição em cujo nome participei do evento). Nos comentários que farei a seguir, porém, estarei me manifestando exclusivamente em meu nome pessoal, como cidadão, e, portanto, dizendo uma série de coisas que não julguei apropriado dizer durante o evento.
2. Apesar de o objetivo declarado do evento ser, como já ressaltado, "promover(...) um amplo debate, reunindo governos, setor privado e a sociedade civil organizada, para examinar a temática da Inclusão Digital e identificar as alternativas mais adequadas para sua viabilização", e apesar da predominância absoluta de empresas privadas entre os patrocinadores, as empresas -- isto é, a iniciativa privada -- foram claramente alijadas da participação nos Grupos de Trabalho, que eram o lugar em que realmente estava acontecendo o que era importante.
3. Esse alijamento não foi não-intencional, por se presumir que não haveria entre as empresas pessoas interessadas no assunto (pois há: a Microsoft acabou de lançar um livro com o título de Inclusão Digital). O alijamento se deu de forma absolutamente consciente e deliberada. O Programa distribuído aos participantes dos Grupos de Trabalho esclarecia: "Cabe lembrar que podem indicar participantes para os grupos de trabalho: organizações civis sem fins lucrativos, fundações, autarquias, entidades de classe, institutos de pesquisa, universidades, governos estaduais e municipais, assembléias e câmaras legislativas, tribunais, procuradorias e promotorias e entidades internacionais com participação brasileira". Ou seja: as empresas privadas serviram para patrocinar o evento e para, mediante uma referência a ela no Programa, dar a impressão aos leitores de que a Oficina iria reunir os "três setores": governo, iniciativa privada, e o "terceiro setor". Na realidade, tratou-se de uma reunião entre o governo e o terceiro setor, com alijamento deliberado da iniciativa privada.
4. Acho essa omissão particularmente arbitrária e injusta, porque muitas empresas têm feito um trabalho excepcional nas áreas chamadas de exclusão social e de exclusão digital. O Instituto Ayrton Senna, em particular, realiza quase que a totalidade de seus programas e projetos em parceria com empresas privadas, que os financiam. O "Sua Escola a 2000 por Hora", por exemplo, é realizado em parceria com a Microsoft e com a Tele Centro-Oeste Celular. Embora a Microsoft fosse patrocinadora do evento e um funcionário seu, Carlos Eduardo Félix Ximenes, tenha dado uma palestra no período da tarde da terça-feira, ele não pode participar dos Grupos de Trabalho.
5. Na realidade, o governo FHC vem, desde o início, procurando cooptar o chamado Terceiro Setor para apoiar o governo - em muitos casos, com sucesso. O caso mais ostensivamente ilustrativo dessa estratégia do governo foi tentativa de "mesclar" o Betinho com a Comunidade Solidária. O Comunidade Solidária mudou de nome, passando a se chamar Comunidade Ativa, e estava presente no evento. O Secretário Executivo do "Programa Comunidade Ativa", Osmar Gasparini Terra, disse, textualmente, em palestra proferida na manhã da terça-feira, "trazer para dentro do governo a sociedade civil organizada". Recentemente FHC indicou Zilda Arns, Coordenadora Nacional da Pastoral da Criança, para o Prêmio Nobel da Paz, tentando fazer dela uma "Irmã Dulce Brasileira" (vide Veja de 28/03/01), e procurando ganhar apoio das entidades do Terceiro Setor que a apoiam e admiram.
6. A forma utilizada para tentar cooptar o Terceiro Setor é o oferecimento, pelo governo, de "parcerias", que, a maior parte das vezes, significa a transferência de recursos do governo para entidades do Terceiro Setor. É preciso registrar que embora haja um número significativo de entidades do Terceiro Setor absolutamente sérias e que apresentam uma real alternativa ao "Primeiro Setor", o governo, buscando recursos de fontes privadas para financiar o seu trabalho, há um número elevado de entidades do Terceiro Setor que foram criadas apenas para obter verbas oficiais e se tornar, assim, uma forma de "terceirização do serviço público". Algumas até são conduzidas por pessoas sérias, mas não resta dúvida de que o campo está aberto a todo tipo de picaretagem.
7. O tópico "Inclusão Digital" se presta bem às entidades do Terceiro Setor que pleiteiam verbas públicas, porque sendo a inclusão digital relacionada à tecnologia, em especial ao acesso à Internet, faz sentido argumentar que os recursos do FUST - Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (instituído pela Lei 9998, de 17 de agosto de 2000), que serão, estima-se, da ordem de pelo menos um bilhão de reais por ano, sejam alocados a projetos de inclusão digital. Até agora, o Governo Federal tem controlado sozinho esses recursos, mas está havendo enorme pressão, da parte de governos estaduais e municipais e de entidades do Terceiro Setor, para que os recursos sejam compartilhados com os demais níveis de governo e com a "sociedade civil organizada". Na verdade, houve, no encontro, propostas de que a gestão desses recursos ficasse a cargo da "sociedade civil organizada".
8. Aqui talvez seja o lugar de discutir essa expressão: "sociedade civil organizada". Os menos avisados poderão pensar que essa expressão é apenas uma forma mais afrescalhada de se referir a todas as pessoas e entidades que, na sociedade, não são governo. Uma pessoa não iniciada, que não desejasse que o governo controlasse a destinação dos recursos do FUST, provavelmente diria, por exemplo, que o uso dos recursos do FUST deveria ser controlado pela sociedade, não pelo governo. Mas isso, segundo os iniciados, seria inviável. Como é que a sociedade exerceria esse controle? Além do mais, iriam as empresas participar desse controle? O termo "civil", na expressão "sociedade civil", é colocado para deixar as empresas de lado. Quando se fala em "sociedade civil", em contextos como esse, as empresas estão fora. Quando se acrescenta o "organizada", pretende-se excluir mais gente ainda: as pessoas, como indivíduos. Para participar da "sociedade civil organizada" é preciso, naturalmente, ser uma organização. Mas igrejas são organizações. Também o são sindicatos, partidos políticos, etc. Para restringir ainda mais o universo do que se entende por "sociedade civil organizada", foi até mesmo promulgada uma Lei, a de nº 9.790, de 23 de março de 1999, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999.
9. Para ser considerada uma "Organização da Sociedade Civil de Interesse Público", e portanto, fazer parte da "sociedade civil organizada", uma organização precisa, segundo o Art. 3º:
A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades:
I - promoção da assistência social;
II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;
IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;
V - promoção da segurança alimentar e nutricional;
VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;
VII - promoção do voluntariado;
VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;
IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;
X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;
XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais;
XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo.
10. Além disso, para ser considerada uma "Organização da Sociedade Civil de Interesse Público", e portanto, fazer parte da "sociedade civil organizada", uma organização não pode, segundo o Art. 2, ser desses tipos:
I - as sociedades comerciais;
II - os sindicatos, as associações de classe ou de representação de categoria profissional;
III - as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais;
IV - as organizações partidárias e assemelhadas, inclusive suas fundações;
V - as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios;
VI - as entidades e empresas que comercializam planos de saúde e assemelhados;
VII - as instituições hospitalares privadas não gratuitas e sua mantenedoras;
VIII - as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito e suas mantenedoras;
IX - as organizações sociais;
X - as cooperativas;
XI - as fundações públicas;
XII - as fundações, sociedades civis ou associações de direito privado criadas por órgão público ou por fundações públicas;
XIII - as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.
11. Ainda há outras exigências formais para o enquadramento, mas, para as organizações que se enquadram fica aberta, conforme estipula o Art. 9º, a possibilidade de "parceria" com o Poder Público "destinad(a) à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público previstas no art. 3º desta Lei" (o item 9, neste capítulo deste documento).
12. Os Termos de Parceria devem estabelecer "previsão de receitas e despesas a serem realizadas em seu cumprimento, estipulando item por item as categorias contábeis usadas pela organização e o detalhamento das remunerações e benefícios de pessoal a serem pagos, com recursos oriundos ou vinculados ao Termo de Parceria, a seus diretores, empregados e consultores" (Item IV do § 2º do Art. 10).
13. Por fim, conforme estipula o Art. 18, "as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, qualificadas com base em outros diplomas legais, poderão qualificar-se como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, desde que atendidos os requisitos para tanto exigidos, sendo-lhes assegurada a manutenção simultânea dessas qualificações, até dois anos contados da data de vigência desta Lei.". O § 1º estipula que "findo o prazo de dois anos, a pessoa jurídica interessada em manter a qualificação prevista nesta Lei deverá por ela optar, fato que implicará a renúncia automática de suas qualificações anteriores".
14. Esses elementos todos explicam "a corrida do ouro" - o ouro sendo os recursos do FUST. Os representantes de governos estaduais e municipais tentavam garantir que a gestão do FUST não seria feita apenas pelo Governo Federal, mas que incluiria os níveis estaduais e municipais. Os representantes das entidades do Terceiro Setor tentavam garantir que a gestão do FUST seria feita com a "sociedade civil organizada" ou, até mesmo, se possível fosse, pela "sociedade civil organizada", sem a participação do governo. E as empresas - especialmente as empresas de telecomunicação, que vão ser responsáveis por gerar esse recursos? Bem, elas geram mas não gerem... - a prevalecerem as posições majoritárias no encontro.
15. Não tenho nada contra a sociedade se organizar. Também nada tenho contra o fato de que qualquer um pode criar uma ONG. Mas não gosto de ver o governo repassando dinheiro para ONGs e outras entidades criadas e administradas por gente que não conheço e não sei quem é - porque o dinheiro que está sendo repassado é, em última instância, o meu dinheiro. Por mais que deteste o governo, quando ele extrapola o que considero suas legítimas funções, o governo tem pelo menos a legitimidade de ter sido eleito por uma parcela significativa da população. Ninguém elege diretor de ONG. Uma ONG não precisa ter representatividade nenhuma para poder fazer uma "parceria" com o Poder Público. E quando vejo o apetite com que vão atrás das "verbas", fico preocupado.
16. Para se ter idéia de até onde vai a "cara de pau" de alguns dos participantes do encontro, um dos grupos aprovou a seguinte recomendação ao governo, que foi o item 173 da minuta de Relatório Final (suprimida, na votação final, por proposta minha): "Reservar parte do lucro das escolas e faculdades particulares para a produção de equipamentos de baixo custo utilizados pelas ações de inclusão digital".
17. Eis algumas outras propostas aprovadas que, a meu ver, não só nada têm que ver com inclusão digital como não fazem porque justificar a inversão de recursos dos pagadores de impostos:
a) Incluir o financiamento de atividades relacionadas com a preservação, promoção e divulgação de identidades culturais diversas no Fundo de Universalização de Serviços de Comunicação - FUST;
b) O resgate dos idiomas indígenas e de outras minorias étnicas pode ser grandemente alavancado pelo uso das novas tecnologias de informação e comunicação - isso enriquece o patrimônio lingüístico nacional; c) Estimular, através das tecnologias de informação e comunicação, o uso das 170 línguas indígenas, bem como as faladas por afro-remanescentes.
18. E assim vai. Fico me perguntando se as línguas indígenas, de "afro-remanescentes", e de outras minoriais étnicas são línguas nacionais ou estrangeiras. Se são línguas nacionais, então o inglês é língua nacional, pois é língua de uma minoria étnica na região de Americana e Santa Bárbara d'Oeste. Se não são, como fica, diante dessa proposta, a "defesa do idioma nacional" capitaneada pelo Deputado Aldo Rebello?
19. Concluo. A esquerda abandonou o projeto de conquistar o governo pela revolução. Usa, hoje, meios mais sutis. Entre eles está o "doublespeak" de que falava Orwell. Testemunhei, nesses quatro dias, a extensão em que está ocorrendo uma revolução lingüística em nosso meio. A questão da "sociedade civil organizada" já foi mencionada. Há dois outros exemplos.
a) Havia um Grupo Destinado a discutir "Diretrizes para a Elaboração de Sites Públicos". O primeiro cuidado do grupo foi mudar o tema para "Diretrizes para a Elaboração de Sites Governamentais", porque havia pessoas no grupo que consideravam que os sites das entidades do terceiro setor também são "sites públicos" - e elas não queriam ninguém se metendo a dar diretriz sobre como elas deveriam construir seus sites... Na plenária final houve até uma discussão do que se quer dizer por "público". Alguém ingenuamente mencionou que todos os sites da Internet são públicos, porque são acessíveis a todos... A isso se retorquiu que "público", neste caso, quer dizer "de interesse público". Mas, continuou o ingênuo, será que um site de uma empresa não pode ser de interesse público? Não, não, apressaram em responder. O site, para ser considerado público, precisa prestar um serviço público, isto é, um governo que só o governo deveria prestar, mas que ele pode delegar, através de uma parceria, para uma entidade da "sociedade civil organizada"...
b) Dado o fato de que muitas entidades da "sociedade civil organizada" se consideram "públicas" e parceiras do governo, houve, também, a tentativa de se considerarem governo, criando a distinção entre "governo estatal" (o governo, propriamente dito) e "governo social" (o governo com elas).
Durma-se com um barulho desses.