24.6.02


A Criatividade da Esquerda


A Criatividade da Esquerda

Dizem que a direita é mais eficiente do que a esquerda. Pode ser. Mas a esquerda é muito mais criativa.

De 14 a 17 de Maio de 2001 participei em Brasília da Oficina para a Inclusão Digital realizada pela Secretaria da Presidência da República, realizada pelo e-gov -- Comitê Interministerial para o Governo Eletrônico, órgão vinculado diretamente à Presidência da República (vide http://www.governoeletronico.gov.br/).

Vou aqui tecer alguns comentários de natureza pessoal sobre o evento, com o intuito de mostrar algumas das estratégias a que a esquerda vem recorrendo para manter o seu objetivo de tomar de assalto o governo e controlar as nossas vidas, roubando-nos a liberdade de que ainda dispomos.

1. Embora tenha participado de três Grupos de Trabalho e de todas as plenárias, procurei restringir minhas manifestações, nessas ocasiões, a questões em que o meu ponto de vista pessoal, no meu entender, não conflitava com, nem ia além, de posições oficiais ou conhecidas do Instituto Ayrton Senna (instituição em cujo nome participei do evento). Nos comentários que farei a seguir, porém, estarei me manifestando exclusivamente em meu nome pessoal, como cidadão, e, portanto, dizendo uma série de coisas que não julguei apropriado dizer durante o evento.

2. Apesar de o objetivo declarado do evento ser, como já ressaltado, "promover(...) um amplo debate, reunindo governos, setor privado e a sociedade civil organizada, para examinar a temática da Inclusão Digital e identificar as alternativas mais adequadas para sua viabilização", e apesar da predominância absoluta de empresas privadas entre os patrocinadores, as empresas -- isto é, a iniciativa privada -- foram claramente alijadas da participação nos Grupos de Trabalho, que eram o lugar em que realmente estava acontecendo o que era importante.

3. Esse alijamento não foi não-intencional, por se presumir que não haveria entre as empresas pessoas interessadas no assunto (pois há: a Microsoft acabou de lançar um livro com o título de Inclusão Digital). O alijamento se deu de forma absolutamente consciente e deliberada. O Programa distribuído aos participantes dos Grupos de Trabalho esclarecia: "Cabe lembrar que podem indicar participantes para os grupos de trabalho: organizações civis sem fins lucrativos, fundações, autarquias, entidades de classe, institutos de pesquisa, universidades, governos estaduais e municipais, assembléias e câmaras legislativas, tribunais, procuradorias e promotorias e entidades internacionais com participação brasileira". Ou seja: as empresas privadas serviram para patrocinar o evento e para, mediante uma referência a ela no Programa, dar a impressão aos leitores de que a Oficina iria reunir os "três setores": governo, iniciativa privada, e o "terceiro setor". Na realidade, tratou-se de uma reunião entre o governo e o terceiro setor, com alijamento deliberado da iniciativa privada.

4. Acho essa omissão particularmente arbitrária e injusta, porque muitas empresas têm feito um trabalho excepcional nas áreas chamadas de exclusão social e de exclusão digital. O Instituto Ayrton Senna, em particular, realiza quase que a totalidade de seus programas e projetos em parceria com empresas privadas, que os financiam. O "Sua Escola a 2000 por Hora", por exemplo, é realizado em parceria com a Microsoft e com a Tele Centro-Oeste Celular. Embora a Microsoft fosse patrocinadora do evento e um funcionário seu, Carlos Eduardo Félix Ximenes, tenha dado uma palestra no período da tarde da terça-feira, ele não pode participar dos Grupos de Trabalho.

5. Na realidade, o governo FHC vem, desde o início, procurando cooptar o chamado Terceiro Setor para apoiar o governo - em muitos casos, com sucesso. O caso mais ostensivamente ilustrativo dessa estratégia do governo foi tentativa de "mesclar" o Betinho com a Comunidade Solidária. O Comunidade Solidária mudou de nome, passando a se chamar Comunidade Ativa, e estava presente no evento. O Secretário Executivo do "Programa Comunidade Ativa", Osmar Gasparini Terra, disse, textualmente, em palestra proferida na manhã da terça-feira, "trazer para dentro do governo a sociedade civil organizada". Recentemente FHC indicou Zilda Arns, Coordenadora Nacional da Pastoral da Criança, para o Prêmio Nobel da Paz, tentando fazer dela uma "Irmã Dulce Brasileira" (vide Veja de 28/03/01), e procurando ganhar apoio das entidades do Terceiro Setor que a apoiam e admiram.

6. A forma utilizada para tentar cooptar o Terceiro Setor é o oferecimento, pelo governo, de "parcerias", que, a maior parte das vezes, significa a transferência de recursos do governo para entidades do Terceiro Setor. É preciso registrar que embora haja um número significativo de entidades do Terceiro Setor absolutamente sérias e que apresentam uma real alternativa ao "Primeiro Setor", o governo, buscando recursos de fontes privadas para financiar o seu trabalho, há um número elevado de entidades do Terceiro Setor que foram criadas apenas para obter verbas oficiais e se tornar, assim, uma forma de "terceirização do serviço público". Algumas até são conduzidas por pessoas sérias, mas não resta dúvida de que o campo está aberto a todo tipo de picaretagem.

7. O tópico "Inclusão Digital" se presta bem às entidades do Terceiro Setor que pleiteiam verbas públicas, porque sendo a inclusão digital relacionada à tecnologia, em especial ao acesso à Internet, faz sentido argumentar que os recursos do FUST - Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (instituído pela Lei 9998, de 17 de agosto de 2000), que serão, estima-se, da ordem de pelo menos um bilhão de reais por ano, sejam alocados a projetos de inclusão digital. Até agora, o Governo Federal tem controlado sozinho esses recursos, mas está havendo enorme pressão, da parte de governos estaduais e municipais e de entidades do Terceiro Setor, para que os recursos sejam compartilhados com os demais níveis de governo e com a "sociedade civil organizada". Na verdade, houve, no encontro, propostas de que a gestão desses recursos ficasse a cargo da "sociedade civil organizada".

8. Aqui talvez seja o lugar de discutir essa expressão: "sociedade civil organizada". Os menos avisados poderão pensar que essa expressão é apenas uma forma mais afrescalhada de se referir a todas as pessoas e entidades que, na sociedade, não são governo. Uma pessoa não iniciada, que não desejasse que o governo controlasse a destinação dos recursos do FUST, provavelmente diria, por exemplo, que o uso dos recursos do FUST deveria ser controlado pela sociedade, não pelo governo. Mas isso, segundo os iniciados, seria inviável. Como é que a sociedade exerceria esse controle? Além do mais, iriam as empresas participar desse controle? O termo "civil", na expressão "sociedade civil", é colocado para deixar as empresas de lado. Quando se fala em "sociedade civil", em contextos como esse, as empresas estão fora. Quando se acrescenta o "organizada", pretende-se excluir mais gente ainda: as pessoas, como indivíduos. Para participar da "sociedade civil organizada" é preciso, naturalmente, ser uma organização. Mas igrejas são organizações. Também o são sindicatos, partidos políticos, etc. Para restringir ainda mais o universo do que se entende por "sociedade civil organizada", foi até mesmo promulgada uma Lei, a de nº 9.790, de 23 de março de 1999, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999.

9. Para ser considerada uma "Organização da Sociedade Civil de Interesse Público", e portanto, fazer parte da "sociedade civil organizada", uma organização precisa, segundo o Art. 3º:

A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades:

I - promoção da assistência social;

II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;

III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;

IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;

V - promoção da segurança alimentar e nutricional;

VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;

VII - promoção do voluntariado;

VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;

IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;

X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;

XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais;

XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo.

10. Além disso, para ser considerada uma "Organização da Sociedade Civil de Interesse Público", e portanto, fazer parte da "sociedade civil organizada", uma organização não pode, segundo o Art. 2, ser desses tipos:

I - as sociedades comerciais;

II - os sindicatos, as associações de classe ou de representação de categoria profissional;

III - as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais;

IV - as organizações partidárias e assemelhadas, inclusive suas fundações;

V - as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios;

VI - as entidades e empresas que comercializam planos de saúde e assemelhados;

VII - as instituições hospitalares privadas não gratuitas e sua mantenedoras;

VIII - as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito e suas mantenedoras;

IX - as organizações sociais;

X - as cooperativas;

XI - as fundações públicas;

XII - as fundações, sociedades civis ou associações de direito privado criadas por órgão público ou por fundações públicas;

XIII - as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.

11. Ainda há outras exigências formais para o enquadramento, mas, para as organizações que se enquadram fica aberta, conforme estipula o Art. 9º, a possibilidade de "parceria" com o Poder Público "destinad(a) à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público previstas no art. 3º desta Lei" (o item 9, neste capítulo deste documento).

12. Os Termos de Parceria devem estabelecer "previsão de receitas e despesas a serem realizadas em seu cumprimento, estipulando item por item as categorias contábeis usadas pela organização e o detalhamento das remunerações e benefícios de pessoal a serem pagos, com recursos oriundos ou vinculados ao Termo de Parceria, a seus diretores, empregados e consultores" (Item IV do § 2º do Art. 10).

13. Por fim, conforme estipula o Art. 18, "as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, qualificadas com base em outros diplomas legais, poderão qualificar-se como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, desde que atendidos os requisitos para tanto exigidos, sendo-lhes assegurada a manutenção simultânea dessas qualificações, até dois anos contados da data de vigência desta Lei.". O § 1º estipula que "findo o prazo de dois anos, a pessoa jurídica interessada em manter a qualificação prevista nesta Lei deverá por ela optar, fato que implicará a renúncia automática de suas qualificações anteriores".

14. Esses elementos todos explicam "a corrida do ouro" - o ouro sendo os recursos do FUST. Os representantes de governos estaduais e municipais tentavam garantir que a gestão do FUST não seria feita apenas pelo Governo Federal, mas que incluiria os níveis estaduais e municipais. Os representantes das entidades do Terceiro Setor tentavam garantir que a gestão do FUST seria feita com a "sociedade civil organizada" ou, até mesmo, se possível fosse, pela "sociedade civil organizada", sem a participação do governo. E as empresas - especialmente as empresas de telecomunicação, que vão ser responsáveis por gerar esse recursos? Bem, elas geram mas não gerem... - a prevalecerem as posições majoritárias no encontro.

15. Não tenho nada contra a sociedade se organizar. Também nada tenho contra o fato de que qualquer um pode criar uma ONG. Mas não gosto de ver o governo repassando dinheiro para ONGs e outras entidades criadas e administradas por gente que não conheço e não sei quem é - porque o dinheiro que está sendo repassado é, em última instância, o meu dinheiro. Por mais que deteste o governo, quando ele extrapola o que considero suas legítimas funções, o governo tem pelo menos a legitimidade de ter sido eleito por uma parcela significativa da população. Ninguém elege diretor de ONG. Uma ONG não precisa ter representatividade nenhuma para poder fazer uma "parceria" com o Poder Público. E quando vejo o apetite com que vão atrás das "verbas", fico preocupado.

16. Para se ter idéia de até onde vai a "cara de pau" de alguns dos participantes do encontro, um dos grupos aprovou a seguinte recomendação ao governo, que foi o item 173 da minuta de Relatório Final (suprimida, na votação final, por proposta minha): "Reservar parte do lucro das escolas e faculdades particulares para a produção de equipamentos de baixo custo utilizados pelas ações de inclusão digital".

17. Eis algumas outras propostas aprovadas que, a meu ver, não só nada têm que ver com inclusão digital como não fazem porque justificar a inversão de recursos dos pagadores de impostos:

a) Incluir o financiamento de atividades relacionadas com a preservação, promoção e divulgação de identidades culturais diversas no Fundo de Universalização de Serviços de Comunicação - FUST;

b) O resgate dos idiomas indígenas e de outras minorias étnicas pode ser grandemente alavancado pelo uso das novas tecnologias de informação e comunicação - isso enriquece o patrimônio lingüístico nacional; c) Estimular, através das tecnologias de informação e comunicação, o uso das 170 línguas indígenas, bem como as faladas por afro-remanescentes.

18. E assim vai. Fico me perguntando se as línguas indígenas, de "afro-remanescentes", e de outras minoriais étnicas são línguas nacionais ou estrangeiras. Se são línguas nacionais, então o inglês é língua nacional, pois é língua de uma minoria étnica na região de Americana e Santa Bárbara d'Oeste. Se não são, como fica, diante dessa proposta, a "defesa do idioma nacional" capitaneada pelo Deputado Aldo Rebello?

19. Concluo. A esquerda abandonou o projeto de conquistar o governo pela revolução. Usa, hoje, meios mais sutis. Entre eles está o "doublespeak" de que falava Orwell. Testemunhei, nesses quatro dias, a extensão em que está ocorrendo uma revolução lingüística em nosso meio. A questão da "sociedade civil organizada" já foi mencionada. Há dois outros exemplos.

a) Havia um Grupo Destinado a discutir "Diretrizes para a Elaboração de Sites Públicos". O primeiro cuidado do grupo foi mudar o tema para "Diretrizes para a Elaboração de Sites Governamentais", porque havia pessoas no grupo que consideravam que os sites das entidades do terceiro setor também são "sites públicos" - e elas não queriam ninguém se metendo a dar diretriz sobre como elas deveriam construir seus sites... Na plenária final houve até uma discussão do que se quer dizer por "público". Alguém ingenuamente mencionou que todos os sites da Internet são públicos, porque são acessíveis a todos... A isso se retorquiu que "público", neste caso, quer dizer "de interesse público". Mas, continuou o ingênuo, será que um site de uma empresa não pode ser de interesse público? Não, não, apressaram em responder. O site, para ser considerado público, precisa prestar um serviço público, isto é, um governo que só o governo deveria prestar, mas que ele pode delegar, através de uma parceria, para uma entidade da "sociedade civil organizada"...

b) Dado o fato de que muitas entidades da "sociedade civil organizada" se consideram "públicas" e parceiras do governo, houve, também, a tentativa de se considerarem governo, criando a distinção entre "governo estatal" (o governo, propriamente dito) e "governo social" (o governo com elas).

Durma-se com um barulho desses.

16.6.02


Liberdade, Direitos e Deveres


Liberdade, Direitos e Deveres

Talvez a característica mais marcante do pensamento liberal clássico seja sua insistência na tese de que nossa liberdade está alicerçada no reconhecimento de direitos, pertencentes e inerentes ao indivíduo, que não são concedidos pelo Estado e que, portanto, nem o Estado pode abolir -- embora lhe compita garanti-los.

São estes os direitos reconhecidos pelo liberalismo para cada indivíduo:

* o direito à vida

* o direito à segurança (da própria pessoa e de seus bens)

* o direito à livre expressão (de opiniões, de estilos de vida)

* o direito à livre locomoção (de ir e vir)

* o direito à livre associação (com quem concorde em se associar com ele)

* o direito à propriedade (de terra, bens e dinheiro)

* o direito à ação na busca de sua felicidade (da forma que lhe parecer mais adequada).

Esses direitos são considerados naturais pelo pensamento liberal porque eles nos pertencem simplesmente em virtude de sermos seres humanos -- não em virtde de sermos cidadãos deste ou daquele país. Sendo naturais, nascemos e morremos com eles: por isso, são também imprescritíveis e inalienáveis. Se eles não forem observados, não teremos condições de nos manter e sobreviver, muito menos de viver a vida que escolhemos viver, como seres racionais e livres.

Cada direito que eu tenho (ou que qualquer pessoa tem) impõe um dever a todos os demais seres humanos.

No caso dos chamados direitos individuais, o dever imposto a todos os demais seres humanos é um dever negativo: o dever de não interferir com meus direitos. Esse é um dever "negativo", pois se trata de um dever de não-agir, de inagir. Assim, se alguém está interferindo com o meu direito de expressão, ou por me obrigar a me expressar, quando não quero, ou por me impedir de me expressar, quando desejo fazê-lo, eu posso, num país livre, chamar a polícia para que ela obrigue esse alguém a parar de interferir com meu direito de expressão.

É por isso que as liberdades que correspondem a esses direitos -- liberdade de expressão, locomoção, associação, propriedade, ação -- são chamadas de liberdades negativas (ou formais). Eu sou livre para me expressar ou agir quando ninguém me impede de fazê-lo. Não é necessário, para que eu tenha liberdade de expressão ou ação, que alguém me dê um microfone, ou um palanque, ou uma estação de rádio, ou uma estação de televisão, ou um jornal, ou uma editora, ou um site na Internet. Isso cabe a mim conquistar, se concluir que preciso desses meios para ser feliz -- isto é, para viver a vida que, racional e livremente, escolhi para mim.

Pensadores de esquerda inventaram, porém, há pouco tempo (é bom que se diga), uma outra modalidade de direitos: os chamados direitos sociais, que envolveriam o direito à educação, o direito ao tratamento de saúde, o direito à moradia, o direito ao transporte, o direito ao emprego, o direito à aposentadoria, o direito a uma remuneração mínima e digna (mesmo na ausência de emprego), e não sei quantos mais direitos (o número aumenta a cada dia e com assustadora rapidez). Afirmam eles que os direitos individuais (a que correspondem as liberdades negativas ou formais) defendidos pelos liberais de pouco valem sem esses novos direitos. Na verdade, alguns chegam a chamar os direitos de expressão, locomoção, associação, propriedade e ação de "direitos burgueses" -- considerando essa expressão uma expressão pejorativa.

Mas há um problema sério com esses alegados direitos sociais. Se eles são de fato direitos (como alegam os pensadores de esquerda), eles devem impor um dever correspondente sobre todos os seres humanos e sobre cada um deles, individualmente. Assim, se alguém tem direito a educação ou a tratamento médico, e não os está recebendo, alguém tem o dever de provê-los; se alguém tem direito ao emprego e está desempregado, alguém tem a obrigação de lhe dar um emprego ou de lhe pagar uma remuneração digna à guisa de seguro desemprego (mesmo que ele nunca tenha feito tal seguro) ou à guisa de renda mínima que todo ser humano deve ter, mesmo que desempregado.

Mas quem é esse alguém que tem tais deveres? Você? Se alguém estiver com câncer ou com AIDS e bater à sua porta exigindo que você cumpra o seu dever de lhe dar tratamento médico, você reconhecerá esse dever e fará isso? Se alguém estiver desempregado e bater à sua porta exigindo que você cumpra o seu dever de lhe dar um emprego ou uma remuneração digna enquanto estiver desempregado, você reconhecerá esse dever e fará isso?

Dificilmente.

As pessoas em geral não reconhecem que esses deveres recaiam sobre elas, individualmente. Entretanto, muitos alegam que esses deveres recaem sobre o governo. Mas o governo não tem um centavo que não seja confiscado de você ou de mim -- e confiscado quer dizer tomado pela força, pois se não pagarmos nossos impostos, seremos presos. Assim, se é o governo que tem o dever de dar cobertura a todos os direitos sociais, em última instância somos você e eu que o estaremos fazendo, através de nossos impostos.

Mas pode ser que nem você nem eu queiramos fazer isso -- ou queiramos ser obrigados a fazer isso. Pode ser que você e eu concordemos que há muitas pessoas que, se receberem uma remuneração sem trabalhar, não vão procurar emprego muito seriamente. Pode ser que você e eu discordemos de um estatista (não confundir com estadista) como Cristóvam Buarque que acha que toda mulher com filhos, trabalhadora ou desempregada, seja remunerada, sem trabalhar, para que crie os filhos, até que eles passem de cinco anos, achando que, se mais esse suposto direito social vier a ser reconhecido, vai haver muita gente que vai fazer de ter filhos uma profissão (como já acontece nos Estados Unidos, em que mães solteiras recebem casa e alimentação gratuita do governo) -- e que a conta vai bater no seu e no meu bolso... [Vide minha nota sobre a proposta de Cristóvam Buarque, abaixo].

Os chamados direitos sociais, portanto, não são direitos, porque eles impõem a terceiros deveres positivos, ou seja, o dever de agir de diferentes formas (e não apenas de não interferir), dever esse que viola a sua liberdade de ação e o seu direito à propriedade de seu próprio dinheiro. Não pode haver um direito que, para ser implementado, envolva a violação das liberdades básicas e dos direitos de outra pessoa.


Liberdades: As Negativas (Formais) e as Assim-chamadas Positivas (Substantivas)


Liberdades: As Negativas (Formais) e as Assim-chamadas Positivas (Substantivas)

No sentido tradicional do termo, liberdade quer dizer liberdade negativa ou formal. Nesse sentido, uma pessoa é livre se ela não é coagida por outras pessoas, isto é, se não é obrigada a agir, ou constrangida a deixar de agir, por terceiros.

O que recentemente veio a ser chamado de "liberdade positiva" ou "liberdade substantiva" (ou, às vezes, com muita "cara de pau", "liberdade real", como se a outra não fosse), é algo que está muito mais próximo de “capacidade, habilidade, meios, recursos, poder ou possibilidade real” do que de liberdade.

É óbvio que qualquer pessoa, no Brasil, é livre para, por exemplo, comprar uma mansão no Morumbi -- livre no sentido de que ninguém a obriga a, ou impede de, comprar uma mansão no Morumbi. Como também é óbvio que muitas pessoas não têm meios ou recursos financeiros para comprar uma mansão no Morumbi, alguns filósofos (geralmente de esquerda) resolveram, arbitrariamente, negar que essas pessoas sejam livres para comprar a referida mansão.

Foi assim que surgiu a noção de "liberdade positiva" ou "liberdade substancial". Ser livre, nesse sentido, é poder (isto é, ter meios ou recursos, capacidade ou habilidade, possibilidade real de) fazer aquilo que se deseja fazer.

Outro exemplo. É óbvio que qualquer pessoa, no Brasil, é livre para, por exemplo, obter um doutorado na USP -- livre no sentido de que ninguém a obriga a, ou impede de, fazer esse doutorado. Mas também é óbvio que muitas pessoas não conseguem fazer esse doutorado porque não têm capacidade ou preparo suficiente para ser aprovada nos processos seletivos. Em decorrência disso, muitos filósofos (em geral de esquerda) negam, de maneira arbitrária, que essas pessoas sejam livres para fazer esse doutorado.

Por que afirmou que os defensores da liberdade positiva ou substantiva sejam arbitrários na sua conceituação de liberdade?

A resposta básica é que a aquisição de uma mansão no Morumbi ou o acesso a um doutorado da USP é livre. Que a aquisição e o acesso são livres quer dizer que ninguém é obrigado a, ou impedido de, se valer deles. Ser livre, porém, não quer dizer que todos precisam ser capazes de fazer essa aquisição ou de aceder a esse doutorado. A liberdade, no caso, é uma condição, extremamente importante (na verdade, sine qua non), para que alguém possa fazer alguma coisa -- mas não é condição suficiente. Para que as pessoas possam fazer uso dessa liberdade, elas precisam cumprir outras condições: ter dinheiro suficiente (no caso da mansão) ou ter capacidade e preparo (no caso do doutorado) -- ou, talvez, ainda alguma outra coisa.

Que as pessoas não sejam igualmente ricas ou igualmente capazes ou preparadas pode ser algo a ser lamentado -- mas não significa que sejam menos livres.

Veja a nota seguinte, sobre direito e dever.


Cristóvam Buarque


Cristóvam Buarque

Em entrevista dada à Revista Isto é, publicada em 7/6/2002, Cristóvam Buarque defende um assim chamado projeto para "acabar com a pobreza em uma década ao custo de R$ 40 bilhões por ano".

Entre outras besteiras, ele defende o seguinte: "A minha proposta é mais simples e dentro do mercado: garantir licença remunerada para toda mulher, trabalhadora ou desempregada, para que ela crie os filhos até cinco anos."

Cabe, em primeiro lugar, perguntar: a mulher desempregada com filho até cinco anos, terá licença remunerada de quê? Já está desempregada, e, portanto, sem trabalhar fora de casa. Vai receber licença de quê? Cristóvam Buarque não se digna responder.

Cabe, em segundo lugar, perguntar: quem vai remunerar essas licenças? No caso da mulher desempregada, parece que o único candidato viável é o governo (isto é, você e eu). No caso da mulher empregada, estaria Cristóvam Buarque pensando no empregador (visto que fala que essa proposta seria "mais simples e dentro do mercado")?

Cabe, em terceiro lugar, perguntar se uma mulher que viesse a ter um filho a (pelo menos) cada cinco anos, dos 15 aos 45 anos, passaria em licença remunerada esses trinta anos de vida fértil. (Lembro-me de um filme muito antigo de Sofia Loren, em que, para não ser presa, ela estava constantemente ou grávida ou amamentando, exigência que levou seu marido Marcello Mastroiani à beira do colapso físico e mental -- acho que o filme se chamava "Ontem, Hoje e Amanhã", algo assim).

É difícil dimensionar a medida de ingenuidade ou "mau-caratismo" que uma tal proposta envolve. Se a tal licença remunerada ficar por conta do governo, Cristóvam Buarque se acha no direito de solucionar um problema metendo a mão no seu e no meu bolso. Não sei sobre você, mas eu não concordo com isso. Se a tal licença ficar por conta dos empregadores, no caso de mulheres empregadas, Cristóvam Buarque se acha no direito de solucionar um problema metendo a mão no bolso deles. Também não concordo com isso, porque em última instância seríamos, novamente, você e eu que acabaríamos por pagar a conta final na forma de maiores preços de produtos e serviços.

Ter filhos é uma decisão pessoal e livre de uma pessoa ou um casal, pela qual apenas a mulher e o homem envolvidos podem ser chamados a assumir responsabilidade. É uma distorção da liberdade exercer um direito e mandar a conta (a responsabilidade) para terceiros.

Cristóvam Buarque, pelo jeito, se acostumou tanto a meter a mão no bolso alheio que nem sente mais que isso pode vir a ser considerado um problema pelos donos do bolso.

Xô, Satanás.


Uma Nota sobre Igualdade


Uma Nota sobre Igualdade

Amartya Sen, em seu livro Inequality Reexamined (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1992), chama a atenção para várias questões importantes relativas ao problema da Igualdade vs Desigualdade.

Em primeiro lugar, Amartya Sen deixa claro que a premissa básica para toda discussão do problema da igualdade é a diversidade huamana -- ou seja, o fato visível e notório de que seres humanos são diferentes uns dos outros e, portanto, desiguais. Se os seres humanos fossem ostensivamente iguais (em características físicas e mentais, especialmente em motivação e capacidades, e, portanto, em desempenho -- para não falar nas circunstâncias em que nascem e que em são levados a viver), não haveria porque estar lutando pela igualdade e contra a desigualdade. Seres humanos são visível e notoriamente desiguais -- por isso há um problema a ser analisado, discutido e, eventualmente, resolvido em relação à igualdade.

Em segundo lugar, Amartya Sen assinala que todas as filosofias políticas admitem que, a despeito de toda essa desigualdade, há algum aspecto em relação ao qual deve haver (note-se bem) igualdade entre todos os seres humanos. A igualdade, portanto, não é um fato que se possa descrever, mas um valor que se deseja prescrever. As várias filosofias políticas divergem, porém, acerca de qual deva ser esse aspecto -- ou seja, acerca da questão "Devemos buscar igualdade em relação a que aspecto?" Até mesmo os liberais clássicos (hoje chamados de libertários nos Estados Unidos), que são os maiores opositores do egalitarianismo (como comumente entendido), admitem que deva haver igualdade de direitos individuais (ou liberdades formais) entre os seres humanos. Assim, a grande questão a separar as filosofias políticas não é que umas defendem a igualdade e outras a combatem, mas, sim, a questão do aspecto (ou dos aspectos) em que, segundo cada uma delas, deve haver igualdade.

Em terceiro lugar, Amartya Sen destaca o fato de que virtualmente todas as filosofias políticas admitem que, ressalvado(s) o(s) aspecto(s) em relação a que defendem que deva haver igualdade, possa haver desigualdades em relação aos outros aspectos. Assim, os liberais clássicos (ou libertários) defendem igualdade de direitos individuais (liberdades formais), mas acham que, havendo essa igualdade, é virtuamente impossível evitar que haja outras desigualdades (especialmente desigualdade econômica e social), dadas as diversidades (em termos de motivação, ambição, capacidade, circunstâncias, oportunidades, sorte) existentes entre os seres humanos. Os defensores da igualdade de renda, por exemplo, podem conviver com desigualdades de bem-estar, porque as pessoas, sendo diferentes umas das outras (nos aspectos citados), darão destinos diferentes às suas rendas iguais, umas usando-as bem, para promover seu bem-estar, outras desperdiçando-as. Mesmo os que defendem igualdade de bem-estar, se os houver, terão que conviver com outras desigualdades, porque o que é bem-estar para um pode não ser para outro, e, portanto, um pode precisar de muito mais renda do que outro para alcançar o mesmo nível de bem-estar (seja lá como for que se meça bem-estar) do outro -- e isso representa desigualdade de renda. E assim por diante.

Em quarto lugar, e no mesmo espírito do que acabou de ser dito, Amartya Sen faz uma distinção importante entre igualdade em relação a meios ou recursos e igualdade em relação a fins ou resultados. Alguns aspectos em relação aos quais se tem defendido que deva haver igualdade são meios para outras coisas, como, por exemplo, renda, "bens primários" (Rawls), "recursos" (Dworkin), etc. Outros aspectos são fins ou resultados ("outcomes"): bem-estar (saúde [ausência de morbidade ou doença], longevidade [ausência de mortalidade prematura] ou felicidade [capacidade de ação, satisfação de desejos, auto-estima elevada, sentido de realização, etc.], etc.

Em quinto lugar, Amartya Sen defende a tese de que o fato de duas pessoas terem igualdade de meio (digamos, igualdade de renda) não lhes garante, necessariamente, igualdade de resultados (bem-estar, felicidade), porque uma pode ser capaz de transformar esse meio no fim desejado, ou seja, transformar essa renda em bem-estar, felicidade, etc., enquanto a outra, por qualquer de várias razões, pode ser incapaz de fazê-lo.

Em sexto lugar, mesmo a sugestão do próprio Amartya Sen sobre o aspecto relevante em que devemos buscar igualdade, a saber, capacidades, não resolve o problema, como ele mesmo admite. Ainda que (por mais impossível que pareça) consigamos que todos os seres humanos venham a ter capacidades iguais, ainda assim não podemos garantir que essas capacidades vão se traduzir nas ações necessárias para lhes trazer igual bem-estar ou felicidade -- a menos que se postule que todos os seres humanos sejam absolutamente idênticos, tese, porém, que contradiz, frontalmente, a observação inicial acerca da diversidade e desigualdade humana.

É nesse contexto que devemos procurar analisar o problema da igualdade -- analisando qual das propostas de "igualdade basal" (proposta acerca do aspecto em que devemos buscar igualdade entre os seres humanos) faz mais sentido.

Eu, como bom liberal clássico, defendo a tese de que a única igualdade que faz sentido buscar é a igualdade de direitos (ou liberdades formais). Mas não vou argumentar a favor dessa tese agora.